23 outubro, 2007

O azarão

Kimi Raikkonen em entrevista coletiva, em Mônaco
Finalmente Kimi Raikkonen é campeão mundial de Fórmula 1. Com fama de azarado, o azarão (com todos os trocadilhos possíveis) dessa temporada chutou o azar para o escanteio, e com extrema competência (e até alguma sorte) arrancou na segunda metade da temporada, devorou seu companheiro de equipe e deixou para trás os rivais da McLaren.

A palavra "azar" tem uma origem interessante. É uma palavra de origem árabe, que chegou até nós pelos mouros, que ocuparam a Península Ibérica por quase 800 anos. "Azar" (azhar) em árabe significa "flor". Havia um jogo de dados, em que em um dos lados havia estampada uma flor, e perdia o jogador que, ao lançar os dados, tivesse a flor voltada para cima - puro "azar", literalmente.

Raikkonen pela Sauber em Spa FrancorchampsA "flor" de Kimi Raikkonen demorou para desabrochar, o que nós, botânicos, chamamos "antese". Ou talvez não. Talvez ela tenha sido cortada algumas vezes antes do tempo, e agora tenha, finalmente, tido tempo de abrir. Pois Raikkonen chegou à Fórmula 1 com apenas 23 corridas de Fórmula em seu curriculum (duas temporadas de Fórmula Renault). Na época, 2000, a concessão da Superlicença ao finlandês foi muito criticada, e até o início da temporada de 2001, quando estreou pela Sauber, muitos ainda consideravam imprudente um piloto tão inexperiente disputar uma prova de Fórmula 1. Ao final do ano, com bons resultados - embora superado pelo companheiro de equipe Nick Heidfeld - foi contratado pela McLaren, com o aval de Mika Hakkinen, para substituí-lo na escuderia inglesa.

Mas ele pagou o preço da inexperiência. Mesmo conseguindo manter o passo com os outros pilotos de ponta em todos esses anos, demonstrou dificuldades de adaptação, problemas para compreender as limitações do equipamento e conservá-lo durante os 300 quilômetros de uma corrida, dificuldades de relacionamento, e até fazendo algumas trapalhadas na pista (as quebras e acidentes que lhe deram fama de azarado). Muitos, inclusive a própria McLaren, esperavam que ele fosse o "próximo campeão" da era Schumacher, mas ele não estava pronto.

Até o início deste ano, Raikkonen pagou pelo pouco tempo de preparação que teve antes de chegar à categoria, penando com extrema dificuldade para compreender o comportamento dos pneus. Mas ele conseguiu, e mostrou que, integrado à equipe e ao seu carro, é um piloto de primeira linha, e, talvez, o piloto a ser batido.

Voltando à Botânica, as flores são polinizadas, e delas se desenvolvem os frutos, e as sementes. E das sementes, novas flores...

Fontes: Portal F1, Globo Esporte (foto da Agência EFE), Formula One Facts (foto)

16 outubro, 2007

Equipes B

Talvez, dentre os campeonatos realizados nesta década, a atual temporada tenha sido a mais polêmica. No topo das discussões estão o Stepney Gate, o fenômeno Hamilton, e a decisão de Fernando Alonso sobre seu futuro na categoria após o GP do Brasil. Em segundo plano está a entrada em 2008 da Prodrive, equipe que tem entre os proprietários David Richards (momento torcedor da Honda: Volta, David Richards!). A equipe tem autorização da FIA para participar do próximo campeonato utilizando chassis fabricados pela McLaren. A polêmica é que o atual Pacto da Concórdia proíbe que uma equipe use o chassis de outra equipe, embora a simpática Toro Rosso consiga maquiar seu chassi RBR do ano passado bem o suficiente para escapar da proibição. As equipes independentes contestam a participação da Prodrive, e exigem que, no mínimo, ela não possa somar pontos no campeonato de construtores, já que ela não será, tecnicamente, construtora de seus próprios carros.

Takuma Sato pilota o FA05 utilizado pela Super AguriO Pacto da Concórdia, um acordo de cavalheiros entre Bernie Ecclestone e as equipes, foi assinado pelos construtores em 1997. Quando a Super Aguri foi inscrita para o campeonato de 2006, precisou realizar diversas modificações e rebatizar o A23 (fabricado e utilizado pela Arrows em 2002) para ser aceita antes de poder construir seu próprio carro (além de ter que fazer várias adaptações referentes ao regulamento do ano passado, claro). A própria Arrows tentou competir com o FA1 em seu ano de estréia, em 1978, porém a Shadow a acusou de copiar seu DN9 (e estreá-lo antes!). A acusação procedeu, e a Arrows teve que construir às pressas o A01. Neste caso, é algo mais parecido com o Stepney Gate do que com a entrada da Prodrive... mas enfim.

A utilização de chassis fabricados por outras equipes, e mesmo a compra de chassis de fornecedores externos não são nenhuma novidade no mundo da Fórmula 1. Até 1993, quando a Scuderia Italia utilizou o modelo T93/30, fabricado pela Lola, não é raro encontrarmos casos semelhantes, e até mesmo alguns de sucesso.

Eugenio Castellotti conduz o D50 utilizado pela Ferrari em 56Nos anos 50 e 60, era muito comum o surgimento efêmero de equipes particulares, montadas para que um piloto corresse algumas provas, e mais comum ainda era que essas equipes corressem com modelos comprados (muitas vezes, pelo próprio piloto) de construtores maiores, construtores esses que normalmente tinham sua própria equipe oficial. Mas equipes grandes e já bem estabelecidas também tiveram que apelar para equipamentos de outrém. Foi o caso da Ferrari em 1955. Ao adquirir o espólio da Lancia, a Ferrari também herdou o modelo D50. Ao longo de três temporadas, o D50 deu à Ferrari 5 das suas 200 vitórias, além do título de construtores e pilotos de 56, conquistado por Juan Manuel Fangio.

O March 761 utilizado pela equipe Williams em 77A equipe vermelha não é a única das equipes atuais a ter utilizado, na íntegra, um carro produzido por outra companhia. A Williams (não a atual Williams Engeneering, mas o time dirigido por Frank Williams), que levanta a voz contra a Prodrive, começou sua trajetória usando chassis Brabham e March. Williams se associou a Walter Wolf em 76, mas se separaram em 77. Em 78, o FW06 era tão mais parecido com o Wolf WR03 do que com seu predecessor, o FW05, que é quase inacreditável que o 06 fosse um modelo original, embora, oficialmente, o fosse (ops, Stepney Gate de novo :^P).

Jackie Stewart ao volante de um March 701 da equipe Tyrrell, em 1970Mas outras grandes do passado precisaram se utilizar desta manobra para poder competir. É o caso da Brabham. Em 1956 Jack Brabham inscreveu-se numa equipe independente para o GP da Inglaterra, utilizando o chassis 250F, da Maserati, o favorito dos times independentes (no caso, de propriedade de Arthur Owen, que mais tarde viria a ser o dono da equipe oficial da BRM). Em 62, quando montou a estrutura de sua equipe de maneira definitiva, utilizou o Type 24, da Lotus, por sete corridas, até que o primeiro BT3 estivesse pronto. Aliás, durante os anos 70, a Brabham se tornaria, juntamente com March e McLaren, uma das principais fornecedoras. Tyrrell também começou sua trajetória utilizando o chassis March 701.

Alan Jones com a Beatrice-Lola do time de Carl HaasA Lola, que eu mencionei no começo, tentou a sorte na Fórmula 1 pela primeira vez em 67, usando o modelo 100 em apenas uma prova. Forneceu o chassis T370 para a Embassy-Hill, porém sem resultados expressivos. Ensaiou seu retorno em 85, associando-se a Carl Haas, seu cliente nos Estados Unidos, em seu projeto de equipe de Fórmula 1, o Team Haas (que acabou mais conhecido como Beatrice). A equipe, construída em torno de Alan Jones, não teve muito sucesso. A partir de 87 formou nova parceria com o ex-piloto e ex-chefe da equipe Renault, Gerrard Larrousse, desenvolvendo chassis para sua equipe. Em 93, como já foi dito, veio a parceria com a Scuderia Italia (por sinal, até então cliente da construtora italiana Dallara). A Lola só retornou com uma equipe própria em 97, na fracassada associação com a Mastercard. Na prática, esta última foi uma grande queimação de filme para a tradicional fábrica inglesa.

Moss com o Lotus 18 da equipe Walker, em 1960Voltando às "equipes B", talvez a mais bem sucedida de todas tenha sido a Walker. Em 17 anos de Fórmula 1, a Walker obteve 9 vitórias, 8 pole-positions, e jamais correu com um chassis de fabricação própria. Utilizando, alternadamente, chassis Cooper e Lotus (também Connaught, Brabham, e, se não me engano, BRM), a Walker atravessou os anos 60 como uma das equipes mais importantes. Em 1961, foi quarta colocada no campeonato de equipes, ficando à frente da própria Cooper. Com o Cooper T53, Moss venceu o GP de Mônaco, embora a Cooper tivesse passado o ano em branco. A equipe era assumidamente a "equipe B" da Lotus em 1970, quando, com Graham Hill ao volante, disputou sua última corrida.

Eu, particularmente, sou a favor da abertura de possibilidade para equipes competirem com carros fabricados por terceiros. Diminui os custos, e permite que times competentes e com menos recursos tentem a sorte, ou, no mínimo, preencham o grid tão vazio hoje em dia. Pois não foi assim que algumas das equipes de sucesso do passado e do presente começaram? Que venha a Prodrive. E, se algumas das pequenas equipes se acharem insatisfeitas com uma provável superioridade da novata inglesa, que sigam o exemplo e busquem alternativas.

Fonte: Formula One Facts.

11 outubro, 2007

Nota de agradecimento

Tenho dez minutinhos para agradecer a todas as visitas, especialmente aos comentários que tenho recebido aqui no blog. Sou dono de um blog que já está quase chegando a puberdade, e por muito tempo tive que lidar com comentários vazios de pessoas que apenas queriam que eu visitasse seus blogs igualmente vazios (seu blog eh fofu visite o meu ta????//??//barra barra), mas aqui não apenas os comentários tem significado para mim, como os blogs que eu descobri através dessas pessoas são minha leitura regular toda vez que venho à net (o que hoje em dia significa duas vezes por semana :^P). Além disso, pelas estatísticas do Google, a média de tempo gasto em cada visitação é alto o suficiente para eu arriscar que, mesmo quem não faz comentários, se entretém de uma forma ou de outra com o que eu escrevo, e isso também é gratificante.

Eu deveria escrever algo que está na minha cabeça sobre “equipes B” (clientes de outras equipes ou fornecedores de chassis, que compravam seus carros ao invés de construí-los), mas ainda não tive tempo. Semana que vem, com certeza.

02 outubro, 2007

O mito do herói

Aquiles prestes a matar a rainha amazona Pentesiléia, em Tróia. Vaso grego do século VI a.C."Uma das muitas distinções entre a celebridade e o herói é que um vive apenas para si, enquanto o outro age para redimir a sociedade."

Ultimamente tenho lido muito sobre mitos e mitologia (curiosamente, para um projeto de tese em botânica... tente imaginar isso). Eu diria que enquanto a farinha de trigo do assunto seja a obra de Carl Jung, o bolo são os livros de Joseph Campbell, Mircea Eliade, Paul Diel, e outros da mesma estatura.

Segundo Campbell (cuja obra de referência é O Herói de Mil Faces), o herói em todo mito é aquele personagem que abandona seu ego infantil durante uma aventura perigosa, e renasce para o mundo com um dom, o dom de transformar a realidade à sua volta. O herói do mito nunca trabalha para si, mas empenha-se em salvar a sociedade em que vive das suas aflições. É o Édipo que retorna para livrar Tebas da Esfinge, o Hércules que se entrega à escravidão e caça as mais perigosas feras do mundo em seus Trabalhos, até mesmo o Anakin Skywalker que, ao ver seu filho Luke à beira da morte, se volta contra seu mestre e livra a galáxia da tirania do Imperador, sacrificando sua própria vida. Pense em um herói, e a sua história seguirá sempre, mais ou menos, o mesmo roteiro, como o refrão de uma música.

Ayrton SennaFiz esse preâmbulo para falar de Ayrton Senna. Eu diria que existem dois Ayrtons: um real e um mitológico. Eu não sou tão fã do Senna como sou fã de qualquer outro piloto excepcional que tenha passado pela Fórmula 1, mas tenho quase certeza de que fãs muito mais empenhados do que eu já tenham passado os olhos sobre eventos da carreira do brasileiro, digamos, um tanto quanto "humanos" (e citarei apenas esses propositadamente, as boas qualidades reservarei para outra ocasião). Político feroz, passou para trás quem pôde para escalar o sucesso, e manteve as amizades certas; passou dos limites da esportividade na pista para garantir suas vitórias; manipulou pessoas e opiniões em proveito próprio; obstinado e compenetrado, não era nem um dos mais alegres nem um dos mais simpáticos protagonistas do espetáculo. Nada exatamente execrável, mas não são, de modo algum, compatíveis com a aura de santidade que alguns preservam ao seu redor.

E por que tantos no Brasil e no mundo adoram (no sentido literal da palavra) Ayrton Senna? Mesmo entre fãs de outros pilotos, especialmente entre os jovens (e mais especialmente, entre os mais fanáticos de Michael Schumacher, ou, aqui no Brasil, entre alguns fãs de Nelson Piquet), Ayrton Senna desperta uma paixão tão primal (e por isso eu temo que escrever sobre o assunto seja como me atirar aos leões) que é necessário, para que seus próprios ídolos tenham maior valor, que Senna seja, necessariamente, desvalorizado. Para um fã alucinado do heptacampeão alemão, é necessário que Senna tenha sido "sujo" ou que tenha menos títulos ou vitórias para que a jamanta de conquistas de Schumacher tenha algum sentido. O que explica essas paixões antagônicas - que, na verdade, são a mesma paixão apontada para direções opostas, porém oriundas do mesmo núcleo? E por que esse núcleo normalmente se chama Ayrton Senna, e não outro piloto igualmente humano e de talento equivalente, como o próprio Schumacher, ou Prost, ou Piquet, ou Clark, ou Ascari, ou Lauda?

Senna sai na frente no GP de Detroit de 1986Ayrton foi um gênio em todos os sentidos. Até meados de 1986, Senna era um piloto talentoso, porém inconstante. Seu talento e seu futuro na categoria eram ofuscados pelo sucesso de Nelson Piquet, na época bicampeão do mundo e disputando mais um título numa equipe de ponta. Senna era a promessa num carro inferior que quebrava ou batia em mais da metade das provas. Eis que, no dia anterior ao GP dos Estados Unidos, em Detroit, o Brasil passou por um baque tremendo ao ver a seleção de Zico e companhia ser derrotada nos pênaltis pela França, nas quartas de final da Copa do Mundo do México. No dia seguinte, após uma corrida espetacular, Senna venceu o GP dos Estados Unidos - com o direito ao detalhe circunstancial de ainda contar com os dois pilotos franceses em segundo e terceiro. Mas o ponto máximo, e justamente o que ficou melhor impresso na minha memória, foi o fato dele ter pego uma bandeira do Brasil e desfilado com ela pelas ruas de Detroit na volta de comemoração. Foi aí que nasceu o herói de Campbell. Não sei se ele tinha isso em mente quando tomou aquela atitude (provavelmente não), mas o fato é que, a partir daí, sua imagem se tornou tão positiva que sua influência nas decisões dentro do "circo" se tornariam quase irresistíveis. Uma coisa era "botar a banca" na Lotus, uma equipe à beira do abismo que dependia dele para o seu sucesso, e a outra foi a capacidade de manobrar os rumos de toda a categoria, como faria nos anos seguintes.

O herói é aquele que abandona seu ego e passa a agir para redimir a sociedade de seus males. A imagem que Ayrton Senna transmitiu naquele domingo, e a imagem que ele adotou para si mesmo até o fim da carreira, foi a imagem do patriota, aquele não estava correndo apenas por fama, fortuna e superação pessoal, mas aquele que estava sacrificando a si mesmo pela sua pátria. Isso conquistou o público de maneira tão contundente que chega a ser uma indagação quase religiosa quando se perguntam "quando surgirá um novo Senna?". Senna leva a bandeira brasileira ao pódio em Interlagos, 1993Não bastou Schumacher demonstrar tanta superioridade em relação aos seus adversários que os fez parecer medíocres durante quase 15 anos, ele não era um "Senna", não era o herói que se esforçava para salvar alguma sociedade qualquer (a despeito de sua generosa doação às vítimas do tsunami na Ásia em 2004/2005). No imaginário popular, Senna dava o sangue para chegar ao final da corrida e empunhar a bandeira de um país com baixa auto-estima.

A palavra "ídolo" vem do grego "eídolon", que significa "imagem". O ídolo é uma imagem de uma pessoa real, não a própria pessoa. A imagem que chegou ao grande público de Ayrton Senna foi a imagem do herói, conforme a definição acima. Até que ponto a imagem foi fabricada e até que ponto ela era real, isso exige uma análise mais profunda que eu não tenho condições de fazer. Mas não é difícil para mim, agora, entender porque, até hoje, esse brasileiro é tão amado tanto entre os fãs do esporte a motor como entre os leigos.

Fontes: JDB Hamilton's Web Site (foto), Formula One Facts (fotos)