25 outubro, 2008

O ano que não terminou

Passeata dos Cem Mil contra a Ditadura Militar, no Rio de Janeiro, em junho de 68
1968 foi um ano de grandes acontecimentos no mundo. "O ano que não terminou" se tornou um jargão (além de ser o título do livro de Zuenir Ventura 1968: O ano que não terminou) entre aqueles que viveram os conflitos entre a geração jovem de 68 e a geração anterior, bem como os protestos entre os que defendiam as liberdades individuais e coletivas contra a opressão de regimes políticos autoritários mundo afora, em alusão às mudanças sociais que se estabeleceram desde então. Começou com a eleição do comunista moderado Alexander Dubcek à presidência da Tchecoslováquia, inaugurando a Primavera de Praga, esmagada em agosto sob o peso do aço dos tanques do Pacto de Varsóvia. Nasciam as primeiras comunidades hippies, e a juventude americana protestava contra a guerra no Vietnã, ao mesmo tempo em que a luta pela igualdade de direitos civis entre brancos e negros explodia naquele país - culminando com o assassinato do reverendo Martin Luther King. Em maio, protestos estudantis, feministas, e greves quase derrubam o governo "linha dura" de Charles de Gaulle, enquanto no Brasil, experimentando o início relativamente brando de um período de ditadura militar, a música popular se transformava em válvula de escape contra a repressão com suas canções de protesto interpretadas em festivais por novatos como Chico Buarque, Caetano Veloso e Geraldo Vandré.

Jim Clark em Kyalami 68, sua última corrida na Fórmula 1Na Fórmula 1, 1968 foi um ano de revoluções duradouras, algumas permanentes. Começou com o domínio avassalador do melhorado Lotus 49 equipado com motor Ford DFV de 8 cilindros, conjunto que já havia revelado seu potencial em 67, mas sofreu com quebras mecânicas constantes. Jim Clark venceu a prova de abertura em Kyalami, mas quatro meses depois faleceu em um acidente num Lotus de Fórmula 2. A perda de Clark foi sentida entre pilotos e dirigentes de uma forma jamais vista. Clark era, para seus próprios adversários, inatingível, perfeito, o melhor de todos, e o acidente fatal (causado, talvez, por um furo de pneu ou uma quebra de suspensão, ou mesmo por uma convulsão de Clark ao volante nas longas retas de Hockenheim) era inexplicável. O vácuo deixado pela perda de Clark foi rapidamente preenchido pelo seu companheiro de equipe, Graham Hill, que venceu as duas provas seguintes, mais a corrida de encerramento, no México, onde sagrou-se bicampeão mundial - a última grande temporada do piloto inglês. Hill devolveu o ânimo à Lotus, que continuaria revolucionando a Fórmula 1 por toda a década seguinte.

Bruce McLaren vence a primeira corrida de sua escuderia em Spa-Francorchamps A morte de Clark coincidiu com a ascenção de Jackie Stewart. O escocês trocara a decadente BRM pela novata equpe Matra, dirigida por Ken Tyrrell. Com duas vitórias, Stewart foi vice-campeão, e prepararia o terreno para um período de 5 anos em que ele seria o piloto a ser batido na categoria. Outra equipe que assumiu seu lugar entre as grandes foi a McLaren. Pela primeira vez a Ford cedia motores DFV para outra equipe além da Lotus, e sua nova cliente, a McLaren, com 3 vitórias no ano (a primeira de sua história em Spa, com Bruce McLaren), ficou com o vice no campeonato de construtores. Dali para frente, com equipamento barato e de boa qualidade, os motores Ford V8 se tornariam a força dominante entre os motores, superando em número de vitórias Matra, Ferrari, BRM e outros rivais de peso, tornando-se, no auge dos anos 70, praticamente o fornecedor "oficial" de motores da Fórmula 1. Foi preciso que os turbocompressores fossem reintroduzidos em 1977 para debelar o domínio dos "fordinhos", mas mesmo assim, a montadora ainda venceria o campeonato mundial de pilotos de 1994, equipando a Benetton.

 Lotus 49 O ano de 68 também viu a introdução de aerofólios nos carros de Fórmula 1. Embora não fossem uma novidade em carros de corrida, a sua introdução, no Lotus de Hill no Grande Prêmio de Mônaco teve conseqüências permanentes. No final da temporada, todas as equipes já haviam desenvolvido aerofólios à sua maneira. Embora elas pudessem ser "destacadas" em algumas pistas, os projetistas passaram a pensar em seus carros contando com o reforço dos aerofólios na criação do downforce e melhoria da aderência nas curvas. Hoje, um aerofólio (um conjunto que pode ser composto por 2, 3, até 4 lâminas de formas e dimensões específicas) é parte tão importante de um carro de Fórmula 1 que o menor dano, ou erro de projeto em um desses spoilers faz com que o carro se torne inguiável em altas velocidades.

A Lotus surge com os carros pintados com as cores do patrocinador em JaramaA outra novidade, que se tornou perene, foi a introdução de patrocinadores nos carros, alterando as sagradas cores nacionais das equipes. Equipes já, desde muito tempo, exibiam os logotipos de patrocinadores e fornecedores de peças, óleo e combustível, sem, no entanto, perturbar o esquema de cores de cada uma. Em 68, os patrocinadores oficiais do campeonato retiraram-se no final de 1967, e as equipes foram autorizadas a procurar patrocinadores individualmente para financiar sua participação. No Grande Prêmio da Espanha, a Lotus alinhou seus carros com as cores vermelha e dourada da fábrica de cigarros Gold Leaf (a primeira de uma longa dinastia de empresas tabagistas), substituindo o tradicional verde e amarelo. Embora as cores nacionais nunca tenham sido esquecidas, e ainda possam ser observadas nos últimos anos em equipes como Ligier/Prost , Jaguar, e Ferrari, são relíquias que disfarçam o fato de que, desde 1968, as equipes de Fórmula 1 sobrevivem de vender espaço nas carrocerias de seus carros para publicidade, e a busca pelo sucesso também coincide com o aumento de receita. Foi o início da Fórmula 1 comercial.

Segundo a revista Time, numa edição especial deste ano, 1968 foi "o ano em que o mundo mudou". A Fórmula 1 também mudou, até onde podemos dizer, para sempre.

Fontes: Formula One Facts (fotos), Wikipédia (inglês), Jornal do Século (publicação avulsa do Jornal do Brasil do ano 2000).

02 outubro, 2008

"Esses são meus amigos, os sequestradores."

Há 50 anos ocorreu um dos fatos mais insólitos na história dos Grandes Prêmios. Em fevereiro de 1958 seria disputado o segundo Grande Prêmio de Cuba, na capital Havana, prova extra-campeonato que contava com pilotos e carros do Campeonato Mundial de Fórmula 1. A presença mais ilustre era a do já pentacampeão mundial Juan Manuel Fangio, convidado pela organização da prova.

O Grande Prêmio de Cuba havia sido planejado pelo ditador Fulgêncio Batista, à época enfrentando problemas com a guerrilha baseada em Sierra Maestra, o Movimento 26 de Julho, liderado por Fidel Castro, para tentar aumentar o prestígio do seu regime, e, com alguma sorte, atrair as atenções de possíveis aliados para os problemas internos da ilha. Juan Manuel Fangio se tornou, involuntariamente, uma peça chave nos esquemas do ditador... e dos guerrilheiros.

Na noite anterior ao Grande Prêmio, Fangio se reunia com seus mecânicos no saguão do Hotel Lincoln, e estava confiante na vitória no dia seguinte. De repente, um homem armado com uma pistola 45 mm irrompeu, apontando a arma para Fangio e dizendo: "Desculpe Juan, mas terá que me acompanhar." Era um membro do Movimento 26 de Julho. Todos permaneceram imóveis. O piloto Alejandro D'Tomaso, que estava presente, fez um breve movimento com as mãos, ao que o sequestrador respondeu aos berros: "Cuidado, se mexer eu atiro! Outro movimento e os mato!" Fangio, no entanto, parecia tranquilo, e não resistiu (de princípio, pensava ser um trote do seu empresário, que estava presente). O homem armado, com a arma apontada para suas costas, o levou para fora do hotel até a esquina, onde um carro os esperava.

Após uma hora escondido no chão do carro, Fangio chegou ao lugar que supunha ser o cativeiro. Entrou em uma casa por uma escada de incêndio. Em um quarto, uma mulher com um filho, em outro, um homem ferido. Os homens saíram, deixando dois companheiros de guarda do argentino. Momentos depois, o levaram novamente a um novo veículo, que o conduziu, de olhos vendados, até uma casa num bairro nobre de Havana. Ali havia muita gente festejando o sucesso da operação. Alguns pediam autógrafos. E El Chueco, amigável, chegou a reclamar que não havia jantado ainda.

Aliás, um ato de terrorismo logo se transformou numa das lembranças mais agradáveis da carreira de Fangio. Embora El Chueco nunca se definisse politicamente, na ocasião simpatizava com movimentos de esquerda e sabia da situação ruim que a ilha vivia desde o golpe de Batista em 1952. Naquela noite, a dona da casa lhe serviu batatas fritas com ovos, que ele comeu com gosto. Na manhã seguinte, o revolucionário Faustino Perez, um dos mentores de toda a operação, lhe trouxe os jornais, e atendeu imediatamente o pedido do argentino de que avisasse a sua família sobre o ocorrido. Ele apenas se recusou a assistir a corrida pela TV. O circuito, montado na parte costeira da capital, possuía um salto numa reta que fazia seu Maserati 450S quase se desmanchar ao tocar o solo. A corrida foi interrompida por causa de um acidente com dois carros (6 pessoas morreram, 40 feridas), e Fangio, depois, pensou que o destino lhe enviara os sequestradores para poupá-lo dos perigos do percurso. "Senhores, vocês me fizeram um favor", disse aos raptores.

O objetivo do grupo era manter Juan Manuel Fangio em cativeiro até o término da corrida. Temrinado o prazo, pensaram em como fazer isso sem correr riscos, pois uma morte acidental de Fangio num tiroteio (ou até se fosse assassinado por homens do ditador) faria muito mal à imagem do Movimento. Então Fangio sugeriu que o levassem até a embaixada argentina (cujo embaixador era primo de Che Guevara). Ao ser deixado lá por uma mulher e dois jovens, Fangio, sorridente, os anunciou: "esses são meus amigos, os seqüestradores", e obteve garantias de que nenhum mal seria feito a eles naquele local. Foram 26 horas de cativeiro.

Do dia para a noite, Fangio se tornou muito popular nos Estados Unidos, que acompanhavam com apreensão os acontecimentos em Cuba (estranhamente, Fidel Castro era uma figura bastante popular entre os jovens americanos, antes de firmar acordos bélicos com a União Soviética). O argentino notou, posteriormente, que "depois de 5 vezes campeão mundial, de ter vencido em Sebring, foi o sequestro em Cuba que me fez popular nos Estados Unidos".

Os revolucionários venceram esse jogo, pois Fangio se tornou uma espécie de embaixador do movimento ao mostrar para a imprensa de todo o mundo que o seu seqüestro não foi algo tão hediondo, e que as intenções dos revoltosos eram boas. A repercussão foi positiva para o Movimento 26 de Julho.

Seu envolvimento com a Revolução não acabou ali. Ainda naquele ano, intercedeu ao general Miranda para que o rapaz que o raptara no hotel, então preso, não fosse maltratado. Quando Fidel Castro assumiu o poder, enviou um convite a Fangio para uma visita a Havana, que ele não pôde atender. No aniversário de 25 anos da Revolução, o argentino recebeu um telegrama de Fidel com saudações de "seus amigos, os sequestradores", recordando que "mais do que um sequestro e detenção patriótica, serviu, junto com sua novre atitude e justa compreensão, à causa de nosso povo, que sente por você grande simpatia, e em nome da qual o saudamos por um quarto de século." Recebeu uma carta semelhante do governo cubano na ocasião do seu 80º aniversário, novamente remetida pelos "seus amigos, os sequestradores".

Hoje, na entrada do Hotel Lincoln, há uma placa de bronze, onde se lê: "Na noite de 24-2-58, neste mesmo lugar, foi sequestrado pelo comando do Movimento 26 de Julho, dirigido por Oscar Lucero, o cinco vezes campeão mundial de automobilismo Juan Manuel Fangio. Ele significou um duro golpe propagandístico contra a tirania batistiana e um importante estímulo para as forças revolucionárias."

Fonte: Fangio, secuestro en La Habana