Tragédias em Spa-Francorchamps
Vou fazer um cross-post do meu outro blog, porque o assunto lá é pertinente aqui. Infelizmente vai só de textão mesmo, sem links nem imagens (estou no trabalho, e esse é o limite que eu me permito de fingir estar trabalhando :P).
Aliás, olá, como vão?
No dia 19 de junho de 1960, o australiano Jack Brabham venceu o Grande Prêmio da Bélgica em Spa-Francorchamps. Esta corrida foi marcada pelos acidentes fatais dos pilotos Chris Bristow e Alan Stacey, a primeira e única vez em que dois pilotos faleceram numa mesma corrida de Fórmula 1.
O circuito de Spa-Francorchamps usado atualmente possui 7004 metros de extensão, e é o maior circuito do calendário da Fórmula 1. No enanto, é um mero resquício do seu desenho original. Inicialmente, a pista de corridas de Spa-Francorchamps foi desenhada ao longo das estradas na região de Ardenes que perfaziam um triângulo, ligando nos seus três vértices as cidades de Francorchamps, Malmedy e Stavelot, passando por várias aldeias e vilas no caminho, como Masta, Mé, Burneville, Cheneux e Rivage, que davam nomes às curvas. Neste percurso, de mais de 15 km, os pilotos percorriam longuíssimas retas e curvas de raio longo. A primeira corrida oficial foi realizada em 1922, e a primeira edição das 24 Horas de Spa (em 1924 e disputada até hoje) tomou lugar nesse traçado.
Em 1960 a corrida seria disputada num traçado mais curto e mais veloz: a antiga subida até o topo do vale da Água Vermelha que terminava em uma curva fechada em U foi cortada por um S rápido em subida ligando diretamente o cotovelo da La Source com a reta Kemmel, tomando a forma da atual curva Eau Rouge; onde a estrada que vinha de Masta chegava em Stavelot, ela voltava através de um retorno fechado em direção a Francorchamps (trecho por onde passa a atual curva Blachimont e leva à reta dos boxes). Ali foi desenhada uma curva aberta e veloz ligando diretamente as duas retas.
Essa reforma da pista, feita nos anos 50, ainda conservava as características de uma estrada pública comum: a pista era bordeada por calçadas, postes, cercas e casas, ocasionalmente com alguns fardos de feno separando espectadores de carros atingindo 280 km/h. Em caso de acidente, as longas distâncias dificultavam o socorro, tanto na parte de comunicação, como no acesso de ambulâncias à pista e o transporte aos hospitais mais próximos. Era um circuito muito veloz, e muito perigoso, mas até aquele ponto, nenhum piloto da categoria havia se acidentado gravemente ali. E os pilotos de corrida daquele tempo aceitavam o perigo como parte do esporte.
Na vila de Burneville a estrada entre Francorchamps e Malmedy fazia uma longa curva à direita de cerca de 800 metros em descida. Perto do seu ápice e da sua saída, a pista era rodeada de barrancos dos dois lados. No lado de fora, o barranco chegava a 4 metros de altura, terminando numa casa e em uma passagem de carros, onde em 1966 a Cooper do suíço Jo Bonnier acabou pendurada depois de uma rodada. "Reta" é uma definição grosseira da pista que vinha antes da Burneville. Saindo da reta Kennel, a maior reta do traçado atual, onde hoje se faz um S fechado à direita antigamente se tomava à esquerda, e a pista seguia por mais de um quilômetro com leves desvios para um lado e para o outro, de maneira que o piloto tinha pouco tempo para alinhar a direção e fazer uma tomada segura no curvão. Num tempo em que os recursos aerodinâmicos eram basicamente inexistentes - os carros eram como charutos com rodas, cuja superfície de contato com o asfalto era bem menor do que o pneu de um carro de rua atual - a estabilidade do bólido nas curvas dependia do controle do piloto na direção, e no trabalho de freio, acelerador e câmbio, tracionando o tempo todo e forçando a parte traseira a orientar o carro no traçado correto.
Durante os treinos, o principal piloto de fábrica da equipe Lotus, o inglês Stirling Moss, rodou e bateu na Burneville devido a uma quebra na transmissão, sendo ejetado no gramado ao lado da pista, com fraturas nas duas pernas, no rosto e na coluna. À medida em que outros pilotos passavam pelo local, alguns paravam para prestar socorro. Àquela altura todos no circuito sabiam do acidente de Moss e o socorro estava sendo prestado, mas quase ao mesmo tempo, outro piloto da Lotus, Mike Taylor, se acidentara em outro ponto da pista, fraturando o pescoço. Demorou para darem falta dele, e mais de meia hora para uma ambulância chegar. Tanto Moss como Taylor sobreviveram, mas enquanto o primeiro voltaria a correr ainda naquele ano, o segundo ficou tetraplégico.
Ainda um jovem na época, Jim Clark, que viria a criar uma reputação de um piloto inabalável e infalível, tremeu nas bases ao ver dois companheiros de equipe correndo risco de morte por causa de falhas mecânicas. Ele largava na décima posição, no meio do grid. A largada foi autorizada com mecânicos ainda na pista. Na volta 13 ele viu outra Lotus, de Innes Ireland, rodar furiosamente no curvão Burneville, dando cinco giros antes de parar atravessado. Ao engatar a primeira, Ireland pensou que o câmbio tivesse quebrado. Ele acelerou fundo, e de repente as rodas giraram e ele foi catapultado para baixo do barranco. Ele nada sofreu.
Chris Bristow era um piloto jovem e ferozmente competitivo, que largara à frente de Clark no seu quarto Grande Prêmio Poucos minutos depois do abandono de Ireland, pilotando uma Cooper en perseguição à Ferrari de Willie Mairesse, Bristow entrou na Burneville pelo lado de fora. Ele teria tentado trazer o carro para dentro, mas perdeu o controle e capotou várias vezes, quase acertando Mairesse. Aparentemente, quando seu carro parou fora da pista, na parte de dentro da curva, em chamas, ele já estava morto - seu corpo todo quebrado foi arremessado na direção de uma cerca de arame farpado, que decepou sua cabeça. Clark disse que quase desistiu de correr de uma vez por todas quando viu seu corpo arrastado por um fiscal como um boneco de pano, e depois ao constatar sangue no seu próprio carro, não se sabe como. Ele passou a detestar o circuito de Spa até o fim da vida.
A fatalidade não interrompeu o Grande Prêmio. Jack Brabham seguia firme na liderança com outra Cooper seguido de longe pelo companheiro de equipe Bruce McLaren. Alan Stacey vinha em sexto, com mais uma Lotus. Stacey tinha ido com Ireland ao hospital na noite anterior visitar Mike Taylor. Taylor e Ireland estavam escalados para dividir um carro nas 24 Horas de Le Mans, e Taylor oferecera na ocasião seu lugar a Stacey. Este Alan Stacey tivera parte da perna direita amputada na adolescência por causa de um acidente de moto, e corria com uma prótese. Era muito difícil para ele acelerar e usar a embreagem com o mesmo pé, como faziam os outros pilotos. Mesmo tirar o pé do acelerador exigia que ele movimentasse todo o quadril dentro do cockpit.
Apenas 5 voltas depois do acidente fatal de Bristow, Alan Stacey saía da Burneville poucos metros depois dos destroços do carro de Chris Bristow, com aceleração total, a 190 km/h. Foi quando um pássaro passou na sua frente e acertou em cheio o seu rosto. Os pilotos usavam capacetes abertos (alguns usavam apenas gorros de couro) e óculos. Ele perdeu a consciência com o impacto. Seu carro deu uma guinada para a esquerda, atravessou alguns arbustos, e caiu numa ribanceira, pegando fogo. Quando o socorro chegou, ele estava morto.
A corrida seguiu até o final com vitória de Brabham, futuro campeão daquele ano. O mesmo traçado de Spa-Francorchamps seria usado continuamente até 1969, quando toda a organização do campeonato decidiu boicotar a corrida por falta de segurança. Em 1979 ele ganharia o seu traçado básico atual, excluindo toda a parte veloz entre Malmedy, Burneville, Masta e Stavelot. Em 1966 o futuro tricampeão Jackie Stewart sofreu um acidente na mesma curva Burneville - pilotando no seco, encontrou a pista subitamente molhada na curva devido à chuva naquele ponto e perdeu o controle do carro, caindo da ribanceira sobre o telhado de um celeiro - e a partir daquele momento ele lideraria o movimento dos pilotos pelo aumento da segurança nos carros e circuitos que levou ao desenvolvimento de um esporte automobilístico tremendamente mais seguro.