27 março, 2009

A fórmula da criatividade

Estive cultivando um longo período de silêncio, mas tenho estado a tento às notícias, crônicas e artigos sobre tudo que tem acontecido nos testes da pré-temporada deste ano. Até assisti, aos trancos e barrancos, os treinos livres em Melbourne na noite passada pela internet, pois aparentemente algo interessante está para acontecer na Fórmula 1.

Eu sempre fui a favor de regulamentos técnicos menos rigorosos. Cheios de brechas e vagos em alguns aspectos. Isso possibilita aos engenheiros e projetistas explorar essas brechas, procurar soluções novas e criativas para tentar melhorar o carro em um ou outro ponto que ninguém tenha tentado antes. Foram regras flexíveis que possibilitaram a miríade de formas vista durante toda a década de setenta, e, mais esporadicamente, nos anos oitenta (das bem sucedidas, como o Lotus 72 em forma de cunha, aos fiascos, como o modelo 56 da mesma escuderia, movido a turbina de helicóptero), a reintrodução dos motores turbo, e soluções que deram certo, como o bico "bigode" da Tyrrell de 1990 (pai legítimo dos bicos de tubarão usados até hoje), ou tinham o potencial para tanto até serem castradas por novos regulamentos, como os carros de 6 rodas, especialmente o protótipo da Williams de 1982. A Fórmula 1 sempre evoluiu, literalmente, nas entrelinhas de seu regulamento.

Na últimas 3 décadas a FISA/FIA cerceou, progressivamente, a criatividade dos homens das pranchetas com regras cada vez mais rígidas sobre a construção dos carros, desde a padronização das medidas de altura, comprimento, dimensões das asas, até a permissão e proibição de certos recursos mecânicos, eletrônicos, e alguns driving aids. Recentemente, chegou-se ao cúmulo de proibir qualquer tipo de motor que não seja um V8, deixando os eficientíssimos V10 e os legendários V12, 4L turbo e H16 enterrados na poeira da história. Nesta década, o único caminho que os engenheiros encontraram para tentar trazer um diferencial aos seus carros, aerodinamicamente, foi com a introdução de diversos apêndices dispostos ao longo do bico, dos estabilizadores das asas, e das laterais dos carros, que deixavam os bólidos com uma aparência questionável do ponto de vista estético.

Esse cerceamento teve como consequência um nivelamento jamais visto entre as equipes. Nunca os últimos colocados tiveram desempenhos tão próximos aos primeiros! Em termos de equilíbrio técnico, a Fórmula 1 atingiu o seu auge, mesmo sendo uma categoria onde a utilização de um mesmo chassis por mais de uma equipe é proibida (por sinal, isso foi uma das medidas adotadas nos anos 80, e bastante enfatizada nos últimos anos, quando a necessidade de cortar gastos tem pressionado pela adoção de fornecedores de chassis para equipes que não possam desenvolver seus próprios projetos). Mas ao invés de trazer emoção e aumentar a possibilidade de surpresas, o que se viu foi uma rigidez hierárquica. Embora uma Force India não fosse tão deficitária em relação a uma McLaren como a Minardi o era dez anos antes, ela jamais se viu em condições de brigar por posições com os carros prateados em uma situação normal de corrida. Embora próximas, as equipes continuaram engessadas, agora não a 1 segundo de distância dos líderes, mas a 3 ou 4 décimos insuperáveis. A Fórmula 1 "equilibrada" continuou dominada pelas mesmas grandes equipes: Ferrari, Renault/Benetton, e McLaren, com uma lenta e gradual ascenção da BMW/Sauber.

Ao longo desses últimos anos, a tendência foi a confecção de carros que buscavam a máxima aderência aerodinâmica, pois o regulamento, principalmente em relação aos pneus, impedia o desenvolvimento de meios de aumentar a aderência mecânica. Isso significa que a estabilidade de um carro depende dele estar recebendo um vento frontal adequado, e que, caindo numa onda de turbulência ou no vácuo do carro da frente, seu desempenho decresce, o que dificultou muito as ultrapassagens. As coisas melhoraram de dois anos para cá, mas ainda assim essa era a maior reclamação sobre a categoria. Para mudar isso e aumentar o interesse da audiência, a FIA tomou medidas drásticas. Mudou o regulamento de maneira radical em vários aspectos, forçando as equipes à pesquisa de novas soluções para, dentro dessa nova fórmula, encontrar as melhores respostas. Sem muita premeditação, os testes segundo essas regras começaram no meio do ano passado, com a Williams avaliando primeiro as novas asas, e a BMW assumindo a ponta no desenvolvimento do KERS. A McLaren e a Toro Rosso ainda usavam seus carros com as configurações do ano passado até algumas semanas atrás. E o mesmo KERS (que, em suma, é um sistema que armazena numa bateria a energia das freiadas, e permite o uso dessa energia para um aumento de alguns segundos por volta da potência do motor), que ainda é opcional, não será usado por todos os times.

Sem muitos parâmetros, cada equipe correu para um lado tentando a melhor solução, tentando chegar primeiro a um modelo que tirasse o maior proveito de todas as regras, e de todas as linhas vazias entre elas. E, até agora, já após iniciados os trabalhos na Austrália, o que se vê é que três equipes que exploraram uma reticência sobre o formato dos difusores traseiros estão obtendo os melhores tempos: Williams, Toyota, e Brawn, o coringa deste ano (e, no primeiro dia da Austrália, entremeadas pela Red Bull, que vinha tendo a supremacia nos testes de inverno, antes do desenvolvimento dos difusores dessas três equipes). Apesar de contestadas pela concorrência (que, tão logo se confirme a legalidade, estarão desenvolvendo suas próprias versões desses difusores, não tenho dúvidas), estamos testemunhando um daqueles casos em que a criatividade, permitida pela introdução de novas regras e pela sua flexibilidade em alguns pontos, gerou uma inovação que faz com que os carros de corrida atinjam um nível superior, avancem em uma nova direção. E, como em tempos passados, permitiu que a criatividade, não atrelada necessariamente ao poder econômico ou ao status quo técnico, alçassem concorrentes inesperados à posição de favoritos às vitórias, até que as grandes, como uma avalanche, encontrem o seu caminho na trilha aberta por eles.

Aconteça o que acontecer, vamos nos lembrar disso por muito tempo.

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