06 agosto, 2009

Hellé-Nice - Cabaré, escândalo, e velocidade

Desculpem por retroceder mais uma vez à era pré-Fórmula 1. Mas já tá feito :^P

Mariette Hélène Delangle nasceu em 15 de dezembro de 1900, em Aunay-sous-Auneau, na França, filha do carteiro local. Em sua adolescência, viu o mundo da Europa colonialista ruir sob o peso da Primeira Grande Guerra - as mulheres, antes relegadas a um status inferior na sociedade francesa, ou restrita a pequenos serviços ou à vida de esposa e dona de casa, agora eram recrutadas como mão de obra na indústria, enquanto a população masculina adulta era dizimada no front. Mariette, com temperamento rebelde, e, de certa forma, beneficiada por essa reviravolta social, tornou-se uma conhecida dançarina do Cassino de Paris, onde adotou o pseudônimo Hellé-Nice.

Essa personalidade, que causava escândalo, era temperada pelas companhias masculinas, através das quais Hellé-Nice desenvolveu o gosto por carros. Mas não apenas por admirá-los, mas sim por acelerá-los em alta velocidade! Durante os anos 30, Hellé-Nice conseguiu um Bugatti T35C e passou a participar de Grandes Prêmios e outras corridas internacionais importantes, competindo contra os maiores de seu tempo, como Achile Varzi, Tazio Nuvolari, Raymond Sommer, Luigi Fagioli, Louis Chiron, Piero Taruffi e Jean Pierre Wimille. Depois de um ano apenas chegando ao final das corridas, em 1934 ela adquiriu um Alfa Romeo "Monza", pintado de azul. Sua constância em participações, sua segurança na condução do carro, e seu jeito extrovertido fora das pistas (e o curioso hábito de correr de boca aberta, apesar dos insetos...), a tornaram uma personalidade conhecida entre os fãs das corridas de automóvel.

Em 1936, ela se inscreveu para o Grande Prêmio do Brasil, a ser disputado no Circuito da Gávea, conhecido como o "Trampolim do Diabo", localizado nas ruas da Zona Sul da cidade. Um Rio de Janeiro dourado, que conflitava entre a irreverência e o conservadorismo, recebeu Hellé-Nice com espanto. Não era de bom tom uma mulher guiar um carro de corridas. Nem mesmo seus hábitos de fumar em público e usar calças passaram despercebidos. Com seu Alfa azul, competindo contra Carlo Pintacuda, Chico Landi e o pioneiro Barão de Teffé, ela terminou a prova em oitavo. A impressão deixada por aquela mulher ousada, mesmo não obtendo um resultado brilhante, foi tão forte, que a partir daquela época, muitas meninas foram batizadas como Helenice (incluindo uma professora minha).

Os competidores do GP do Rio foram convidados para a realização do Grande Prêmio de São Paulo, dois meses depois. A corrida seria realizada num retângulo que compreendia a Rua Colômbia, a Rua Estados Unidos, a Rua Canadá, e tinha a linha de chegada na Avenida Brasil, numa área residencial da capital paulista. As duas Alfa Romeo da equipe oficial de Carlo Pintacuda e Attilio Marinoni eram as favoritas, como haviam sido na Gávea - Pintacuda liderava com folgas quando teve problemas mecânicos. O Barão de Teffé corria por fora, e Hellé-Nice era quem atraía a maior curiosidade do público.

A corrida se iniciou com atraso, pois o governador de São Paulo Armando de Sales Oliveira, que desceria a bandeira para a largada, ficou preso no trânsito (isso já em 1936!). O público se apinhava nas calçadas e ruas de acesso ao circuito, bem como nas janelas dos edifícios ao redor, ansioso por aquele que seria o maior evento automobilístico da história da cidade. Logo após a largada, as duas Alfas vermelhas dispararam na ponta. Hellé-Nice saltou para um surpreendente terceiro lugar, seguida pelo italiano da Bugatti, Vittorio Coppoli (vencedor no Rio dois meses antes), Teffé e o jovem Chico Landi. Em certo momento, Marinoni rodou e ficou parado na pista, sem conseguir arrancar. Pintacuda, o líder, veio em seguida e, com o próprio carro, empurrou o companheiro de equipe de volta para a disputa. Enquanto isso, Hellé-Nice teve que fazer um reabastecimento, caindo para a quarta posição.

A francesa vinha recuperando terreno, e, tirando cerca de 5 segundos por volta, voltou à disputa pelo terceiro posto contra Teffé. O aristocrático piloto brasileiro "embarrigou" na esquina da Rua Canadá com a Av. Brasil, o que permitiu o bote da Alfa azul de Hellé-Nice. Os dois cruzaram a linha de chegada emparelhados, abrindo a última volta da corrida.

Então algo não muito bem explicado aconteceu. Aparentemente, uma briga entre torcedores e policiais à beira da pista, ou talvez até um fã alucinado do Barão, resultou num fardo de feno, usado para proteção no meio fio, sendo jogado no meio da pista. Hellé-Nice atingiu o fardo de feno a cerca de 160km/h. Seu carro foi catapultado para fora, capotando duas vezes, e atingindo a multidão. Cerca de 6 pessoas faleceram com o impacto, e mais de 30 ficaram feridas. A piloto foi lançada para fora do carro no primeiro momento, e seu corpo atingiu um policial, que absorveu grande parte do impacto. Hellé-Nice sofreu traumatismo craniano e ficou dois meses internada, mas o guarda que involuntariamente lhe salvou a vida, veio a falecer em decorrência dos ferimentos. Traumatizada, Hellé-Nice, a principal mulher piloto dos anos dourados dos Grandes Prêmios, nunca mais participou de competições oficiais. Ela faleceu em 1984 de causas naturais.

Fonte: The Golden Era of Grand Prix Racing 1934-40

6 comentários:

Ridson de Araújo disse...

Monocromático, só p/ te fazer rever meu comentário em um post sobre o Ecclestone piloto:

excelente e elucidativo texto. Gostaria de dizer que foi com satisfação que me apropriei dele (o texto sobre ecclestone) para fazer no meu blog, Histórias e Velocidade,na coluna Uma Opinião, um texto analisando Bernie Ecclestone..confere lá o blog e o post...abraços e continue o bom trabalho



http://historiasevelocidade.blogspot.com/2009/08/uma-opiniao-bernie-ecclestone.html


só postei aqui também pq sei como é dificil ver comentários de textos antigos..um abraço

Rafael Penacho disse...

Excelente texto, mas eu tenho um comentário a fazer. Hellé-nice não abandonou o automobilismo por causa do acidente, mas sim por uma acusação absurda do Louis Chiron, quando voltariam a ser disputados os Grand Prix na Europa após a segunda guerra. Ele a acusou de nazista e, como o cretino era super respeitado, o abusurdo sem provas foi tomado como verdade, assim como a vaga dela na Bugatti. E ela morreu de causas naturais sim, mas não de forma plácida. Ela morreu pobre e largada num apartamento podre em Paris. Maldito Chiron!

Dermeval disse...

Gostei muito da matéria.

Unknown disse...

EU ADOREI POIS MI CHAMO hELLENICE

Cado disse...

Bem interessante. Adoro automobilismo e primeira guerra mundial. A união dos dois e a história dessa mulher remonta os primórdios da velocidade. Parabéns e não deixe de visitar http://chemacchina.blogspot.com/

Valeu

Osmar Calixto disse...

O que me estranha na história é o fato do Barão de Teffé ter corrido na Gávea em 1936 se ele morreu em 1931...