O Conde de Dumfries
Foram míseros 3 pontos contra 55 de Ayrton Senna, seu companheiro de equipe. Por causa daquela temporada de 1986, por toda a vida eu achei que Johnny Dumfries era um dos piores pilotos que já passaram pela Fórmula 1. Mas investigando um pouco mais, descobri que não só ele não é, nem de perto, o piloto fracassado que eu pensei que fosse, e nem sequer uma pessoa como as outras.
Se o título de campeão mundial nem passou perto, ao menos ele nasceu com outro: o escocês John Colum Crichton-Stuart é o 7o. Marquês de Bute, e, até 1993, também o Conde de Dumfries. John descende tanto dos Tudor (a família real inglesa) como dos Stuart (a família real escocesa). Seu pai, John (aliás, todos os seus 5 últimos ancestrais tinham o mesmo nome, e seu único filho homem também) o mandou para os estudos, mas aos 19 anos Johnny resolveu abandonar temporariamente a pompa da nobreza britânica e seguir sua verdadeira paixão: o automobilismo. E naturalmente, ele foi atrás da categoria mais nobre, a Fórmula 1. Em 1977 foi indicado pelo seu primo Charlie, que trabalhava para a Williams na parte de contatos publicitários, a Frank Williams para dirigir um dos caminhões da equipe. "Era uma situação estranha empregar alguém da realeza, mas sua atitude era normal e natural, e ele deixava as pessoas à vontade" lembra Frank. Segundo o chefão da Williams, Johnny era alegre, trabalhava duro (usava sempre botas de pedreiro), e era uma pessoa muito direta. Até por isso, ao invés de se referir a si mesmo com toda formalidade que sua posição tradicionalmente requer, o escocês passou a usar um nome mais simples: Johnny Dumfries.
A carreira começou para valer a partir de 1980, no kart. Seu primeiro kart tinha motor de Lambretta, e uma das quatro rodas também! Naquele ano sofreu um acidente e quebrou os dois tornozelos. Enquanto se recuperava no hospital, recebeu um telegrama assinado por Frank Williams, Alan Jones e Clay Regazzoni, que dizia: "certamente será a primeira de muitas". Passando para a Fórmula Ford 1600, passou 2 dois anos progredindo notavelmente.
Num treino em Oulton Park, Eddie Jordan - já comandando sua equipe - protestou contra o motor de Dumfries que estaria adulterado. O escocês trocou o motor, e a partir dali começou a vencer corridas. Até hoje Jordan, quando o encontra, aponta para ele e diz "Johnny, eu fiz você".
Em 1983 chegou à Fórmula 3 inglesa, onde foi massacrado pelo duelo Ayrton Senna-Martin Brundle, embora em uma corrida, em Silverstone, tenha duelado com o brasileiro pela vitória (Senna o jogou para fora da pista quando Dumfries tentava ultrapassá-lo, mas ele voltou e permaneceu na sua cola até o acelerador quebrar). Mas em 84 ele teve seu grande ano. Competindo simultaneamente no campeonato inglês e no europeu da categoria, Dumfries foi campeão britânico com nada menos que 10 vitórias. No europeu, levou a disputa pelo título até o final, perdendo para Ivan Capelli - mas deixando em terceiro um certo Gerhard Berger.
O desempenho atraiu a atenção de grande equipes de Fórmula 1, e passou o ano de 84 testando para Brabham, Williams, McLaren e Lotus. Em 85 assinou contrato de exclusividade com a Ferrari como piloto de testes, enquanto competia no primeiro campeonato da Fórmula 3000 com a Onyx. E a grande chance viria no ano seguinte, com a Lotus.
Mas nem tudo são flores. Por trás daquele desempenho pífio na sua única temporada estavam problemas graves de ordem técnica, política e administrativa. A Lotus naquele ano começava a dar sinais de fraqueza, e no final de 85 ela estava nas mãos de seu patrocinador - a John Player Special - e curiosamente do seu piloto mais novo e mais talentoso, Ayrton Senna. Senna sempre foi um político agressivo na sua carreira, e durante 1985 ele tratou de minar Elio de Angelis, tanto exercendo pressão psicológica sobre a equipe como mostrando maior competência na pista, fazendo o italiano procurar outro time para o ano seguinte depois de 5 anos na Lotus. A vaga aberta fez com que a JPS pressionasse o diretor da equipe, Peter Warr, a aceitar um piloto britânico, e o favorito era Derek Warwick.
Warwick era um piloto de talento reconhecido no circo, com mais experiência, e que estaria chegando após dois anos como piloto da Renault. Poderia ter ido para a Williams em 1985, mas a desconfiança no projeto da Honda o fez recusar a proposta - Frank contratou Nigel Mansell no seu lugar. Não creio que Senna desconfiasse de seu próprio talento para superar Warwick na pista, mas a chegada de um inglês com apoio do patrocinador e do fornecedor de motores significava que a equipe teria que dividir atenções. Sabendo da má fase administrativa pela qual passava a equipe, Senna sabia que ela só teria condições de colocar um dos carros em ponto de bala para lutar por vitórias, e a divisão dos esforços significaria que ele seria empurrado para trás no grid com equipamento ruim. Por isso Senna vetou a transferência de Warwick, ameaçando seguir Elio de Angelis (que coisa) e ir para a Brabham se o inglês fosse contratado. Consultado sobre quem seria o piloto ideal, Senna indicou seu amigo Maurício Gugelmim. Mas como Maurício ainda não tinha qualquer experiência - e nem era britânico - Senna voltou atrás e indicou o piloto de testes da Ferrari, o seu rival naquela corrida chuvosa em Silverstone.
Não foi uma escolha cega da equipe. Dumfries construiu uma sólida reputação como test driver, embora lhe faltasse aquele toque de genialidade que fazem os pilotos vencedores. Com isso, a JPS tinha seu piloto britânico, Senna tinha um companheiro que não o iria incomodar, e o escocês tinha um carro para realizar seu sonho.
Será que tinha? Na estréia no Brasil, o Conde escocês largou em oitavo e vinha entre os 6 primeiros quando o carro número 11 quebrou. E as quebras se tornaram uma constante durante o ano. A verdade é que a Lotus só tinha condições, realmente, de preparar um dos carros para disputar as primeiras posições. O outro carro recebia componentes usados, de versões anteriores, ou até mesmo sem condições de uso - a Lotus usou Dumfries para testar um novo câmbio de 6 marchas... em plena corrida (segundo ele, com essas palavras, "era uma merda")! Eram dois carros totalmente diferentes, e isso era evidente na pista - nem Michael Andretti teve um desempenho tão abaixo de Senna, entre todos os seus companheiros de equipe, e era claro que isso não era natural. Os problemas da equipe eram tais que mesmo o carro especialmente preparado para Senna o deixou na mão diversas vezes. Sua melhor corrida naquele ano foi o memorável GP da Hungria, quando conseguiu levar seu carro até o final na quinta colocação. O terceiro ponto veio com o sexto na última corrida, na Austrália, onde Senna ironicamente abandonou com o motor estourado.
No final do ano, a JPS deixou a Lotus, e com isso o patrocinador que garantia sua vaga não existia mais. Em 87, a Honda trazia no pacote Satoru Nakajima, e o escocês foi demitido. Embora tivesse cometido poucos erros e mostrado uma habilidade na média da concorrência, os 3 pontos contra os 55 de Senna (incluindo duas vitórias espetaculares em Jerez e Detroit) pesaram contra, e Dumfries ficou sem lugar no ano seguinte.
Johnny Dumfries continuou na Fórmula 1 como piloto de testes da Benetton entre 1988 e 90, desenvolvendo seu projeto de suspensão ativa.
Em 1988 alcançou a glória vencendo as 24 Horas de Le Mans pilotando a histórica Jaguar XJR-9 ao lado de Jan Lammers e Andy Wallace, e até 1992 disputou o Campeonato Mundial de Esporte-protótipos (em 89 e 90 foi o líder da equipe Toyota). Em 89, durante as 24 Horas, Dumfries teve problemas com a suspensão de seu carro. Com o bólido encostado na pista, ele desceu e começou a concertar a suspensão quebrada ali mesmo. Boa parte dos mecânicos da equipe se juntaram na beira da pista, mas eles se seguravam para não mexer no carro para não sofrerem uma desqualificação. Após duas horas e sob muitos aplausos, Dumfries conseguiu fazer o carro andar novamente, pelo menos para ir até os boxes. Mas quando ele foi acelerar, a roda enroscou um cabo de uma câmera que havia passado por ali, e quebrou tudo de novo.
Entre 91 e 92, Dumfries estava tentando acertar sua ida para a Indy, mas problemas financeiros de seu patrocinador - ele nunca correu com o próprio dinheiro - e com a equipe o fizeram desistir das corridas de automóvel. Depois de se aposentar, Johnny Dumfries - que mudou seu nome "artístico" para John Bute - passou a se dedicar aos negócios da família quando seu pai ficou doente, e também e às artes plásticas, ganhando boa reputação como pintor e decorador (o ex-piloto de Tyrrell e Lotus Julian Bailey, ao conhecê-lo, achou que "ele certamente fala como um decorador"). No Festival da Velocidade de 2000, em Brands Hatch, Dumfries apareceu com o Jaguar com o qual venceu em Le Mans - durante uma volta, errou uma freiada e subiu com o carro morro acima até bater. Johnny apenas levantou as mãos e as levou ao capacete em desespero pelo carro perdido. Em abril passado, Dumfries colocou a antiga casa da família - em Dumfries, Escócia - à venda, com o valor inicial de 13,5 milhões de dólares. Foi vendida dias atrás a um grupo interessado em sua preservação liderado pelo próprio Príncipe Charles.
Embora a passagem pela Fórmula 1 tenha sido rápida e discreta, talvez a pior fase de sua carreira como piloto, ele guarda até hoje recordações daquele tempo. Ao final da sua última corrida, na Austrália, os mecânicos da Lotus fizeram uma pequena festa e o presentearam com uma escultura feita de pedaços de uma caixa de câmbio quebrada, reconhecendo o esforço e o trabalho limitados pelo péssimo equipamento que tinha nas mãos. Se ele passa compreensivelmente esquecido até na memória dos mais fanáticos, pelo menos de mim ele ganhou o respeito - pesquisar a biografia dele foi uma delícia. Segundo Mark Blundell (resgatado por Dumfries de uma pancadaria num bar no México), "ele é um Top Banana. É o máximo que alguém pode chegar na minha lista!"
Fontes: Johnny Dumfries Official Website (os depoimentos dos amigos são impagáveis), Wikipedia, 8W (incluindo fotos), Site oficial do Príncipe de Gales, Wheels Archives (foto), Telegraph, Formula 3 History (foto), Formula One Facts (fotos).
2 comentários:
Olha, adorei este teu post sobre o Dumfries. Para além de estar bem escrito, é muito divertido! Já agora, aproveita e faz uma visita ao meu, pois tenho lá duas biografias que tu deves gostar.
Um abraço, do Outro lado do Atlântico.
Olá Monocromático, muito bom o texto sobre a história de Johnny Dumfries, eu lembro de ver ele na F1. Como está no texto, ele era um bom piloto mas penou com um carro muito mal estruturado.
Um abraço e vou continuar acompanhando o blog!
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